sexta-feira, outubro 01, 2004

Sorte

Para quem lê este blog (estou mesmo convencido que há pessoas que já lêem isto...) e não gosta de ouvir falar de futebol, vão lá fazer os vossos estudos bíblicos e não percam tempo .

Ontem assisti radiofonicamente a um momento de poesia. Ainda mais exacerbante porque quem o disse não fez ideia do que disse. Foi mesmo intervenção divina (voltem , que isto afinal ainda pode ser interessante como estudo bíblico).
Taça UEFA, Braga-Hearts, golo de João Tomás (como o que marcou na Luz, mas desta vez não foi anulado).
O relatador, depois da explosão de alegria, passa a palavra ao repórter de campo para uma descrição mais à flor da relva. Ao que sai esta pérola:

“João Tomás teve o mérito de ter a sorte de estar no sítio certo.”

Dirá logo o mais desprevenido (como eu, logo a seguir a ouvir isto): “se é mérito é mérito, tem intervenção do sujeito, se é sorte é sorte, e veio-lhe parar a bola aos pézinhos”

Ora isto é só é tão somente riscar a superfície vidrada do acontecimento com uma unha encravada. Se a riscarmos com um diamante, podemos, (para além de partir a dita superfície vidrada), descobrir algo mais profundo, mais filosófico, mais estapafúrdio. Ora vejamos:

Segundo esta frase, a sorte advém do mérito do sujeito que pratica a acção. Ou seja, para ter sorte há que trabalhar por ela. Há que a merecer.
O que nos leva a deduzir que há alguma entidade, que avalia as acções de cada um e regulamenta a quantidade de sorte a distribuir por cada uma das pessoas que, meritoriamente, diga-se de passagem, trabalham por ela. Alguma ERDS – Entidade Reguladora da Distribuição de Sorte.

A função dessa entidade será verificar quais os elementos da sociedade que mais trabalham para ter sorte, e fornecê-la em doses aceitáveis. É claro que existem casos em que parece que não existe a ERDS, mas, como qualquer entidade pública que se preze, nesta também existirão cunhas, pressões, lobbies ou embirrações que as justificam.

Aí está um trabalho que será pouco apetecível. Embora seja funcionalismo público, e, como definição, só trabalhem aqueles que estão a prazo. Agora, quem trabalhar na ERDS nunca poderá ter sorte na vida. Mesmo que a mereça. Porque seria um óbvio caso de favorecimento em causa própria.

Nós, comuns mortais, vivemos sempre na ilusão de que poderá existir uma centelha de sorte nas nossas vidas. Ou, já sabendo desta teoria, que podemos melhorar as condições para ter alguma sorte.

Agora estas tristes criaturas, prosseguem na sua labuta, sabendo sempre que a sua vida nunca será pontuada por um “oh” ou um “ah” de surpresa, ou de espanto. Serão portanto os funcionários da ERDS, a nível mundial, recrutados entre os habitantes da Coreia do Norte, país em que a população já deixou de saber o que significa a palavra sorte (para além de outras palavras como comida, chocolate, felicidade, sorriso e estrangeiro).

Ora os funcionários da ERDS só têm acontecimentos surpreendentes, quando os seus colegas funcionários da ERDA (Entidade Reguladora da Distribuição de Azar) lhes resolvem pregar partidas. Como foi o caso de colocar o barrilito de óculos no lugar do pai.

O nome desta segunda organização já deu origem a uma infinidade de expressões. Quando o povo tinha azar dizia: “aqui houve Mãozinha da Entidade Reguladora da Distribuição de Azar”. Como falar com siglas poupa tempo e saliva, surgiu o conhecido: “aqui houve MERDA”.

Ainda dizem que o futebol não dá que pensar...

O que podem é continuar a dizer que a partir do futebol não sai nada de jeito, isso podem.

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